(Conto fictício livremente inspirado em fatos reais)
Como todas as noites, tirando domingos, às 8pm – ele prefere falar em am e pm, não em 8 ou 20 –, o senhor retira-se para seu quarto no segundo andar de sua casa no Morumbi. Pendura a peruca preta no cabide e deita sozinho na cama king size (a senhora, tem quarto próprio). Pé direito à frente do esquerdo, para subir ou descer. Após ajeitar o travesseiro de plumas sob a cabeça, liga o televisor de umas 50 polegadas (não foi ele que comprou na loja; então não sabe ao certo o número de polegadas). O canal é sempre o mesmo. Naquele momento passava uma entrevista com outro senhor, um tanto mais jovem do que o deitado na king size e, por isso, ainda não careca. Apesar de que um tufo grisalho no topo da cabeça parecia até uma peruca, mas não era, sabia bem analisar o careca recolhido nos lençóis e que jamais deixava seu dormitório sem sua cabeleira artificial; nem quando caminhava a passos lentos para o quarto vizinho, da senhora, em raras noites.
“Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”
“Patriota. Respira o Brasil”
“Eu tenho pena do empresário no Brasil, porque é uma desgraça você ser patrão no nosso país, com tantos direitos trabalhistas. Entre um homem e uma mulher jovem, o que o empresário pensa? ‘Poxa, essa mulher tá com aliança no dedo, daqui a pouco engravida, seis meses de licença-maternidade’. Quem que vai pagar a conta? O empregador. Quando ela voltar, vai ter mais um mês de férias, ou seja, ela trabalhou cinco meses em um ano”
O senhor careca se vê naquele homem na TV. Ele, empresário, sempre teve pena de si mesmo. É um absurdo pagar 13º salário, férias e, ainda mais, licença-maternidade. Imagine que nos últimos tempos, esses de Google, Facebook e iPhones, há até umas empresas metidas a moderninhas que querem dar licença-paternidade! Do jeito que está é dificílimo sobreviver.
O senhor menos careca e menos velho na tela finalmente sacou os maiores problemas do mundo. Ele fala aquilo que os outros não têm coragem de falar na era do que o senhor careca apelida de politicamente correto. Imagina que, outro dia, foi reprimido na mesa por uma das filhas só por ter dito “Isso é coisa de preto”. Há tanto exagero hoje em dia. Não pode dizer mais “é coisa de bichinha”; nem evidenciar como mulher é diferente de homem; e mulher nasce mulher, com vagina. O senhor careca na cama não aguenta mais tudo isso.
Fazia nem uma semana que, chegando no portão de casa, tinha três garotos andando e fumando maconha na calçada. Vê se pode! Na época dele, só podia fumar maconha escondido. Ainda bem que o segurança estava na porta esperando a chegada dele. O senhor careca, de peruca preta, fora de casa, se vê como tão humilde que nunca quis ter motorista; prefere dirigir seu igualmente modesto Honda Accord (blindado só pelo excesso de malas na rua) por si só. Já a senhora que visita às vezes no quarto vizinho ao teu exige motorista, sim, para a BMW X6. E se ele contasse por aí que está flagrada mais uma prova de como mulher é fresca, cheia de mimos, que gosta mesmo é de aviõezinhos de dinheiro, logo seria chamado de machista. Vê se pode.
Mas o senhor mais jovem e não tão careca na TV tinha coragem de falar tudo isso. De assim representar uma maioria que não deveria mais se curvar às exigências das minorias. Finalmente o senhor careca na cama poderia voltar a falar “coisa de preto” ou “serviço de preto”. Também não hesitaria em logo retomar as piadas com loiras burras.
Quer mais? O senhor não tão careca da entrevista na TV ia melhorar a vida dos homens de bem e batalhadores como ele. É a promessa de campanha! Dá realmente pena de ser empresário no Brasil. “A rotina é dura, cheia de altos e baixos, e o dinheiro sobra cada vez menos”, reflete o senhor careca sem peruca, enquanto abastece de água o copo de cristal no criado-mudo, usando para tal uma jarra prateada que herdou da mãe e que nunca trocou por achar caro demais uma nova.
Ao provar a água, ele logo nota que finalmente a empregada novata foi instruída direito pela velha empregada – ele prefere, na real, o termo doméstica; mas também o tinham reprimido por isso (agora, com o senhor não tão careca da TV, ele prometeu a si que voltaria a usar as palavras que bem entendesse, sem censura imposta por essas minorias). A nova, portanto, doméstica recordou que deveria colocar água não do filtro, mas da garrafa Perrier da geladeira. O senhor careca sabe diferenciar pelo gosto.
Nem percebeu, o papo estava tão bom, e a entrevista já tinha acabado na TV. Antes de dormir, o senhor cogita se assiste a “A Lista de Schindler” noutro canal ou se permanece no mesmo para ver (pela quinta vez, pelas contas) “Histórias Que Nossas Babás Não Contavam“.
Escolhe a pornochanchada. Mas começa a dormir ainda enquanto Branca de Neve conhece a madrasta mais intimamente, numa das primeiras cenas. Um sonho leve e aliviado. Um de um senhor careca que tem certeza que amanhã será um bom “dia de branco”, como gostava de falar quando ainda podia falar assim; e voltará a poder falar assim! Um de um senhor que observa o seu país finalmente retomar o eixo, sob o comando do senhor não tão careca da TV. Voltando assim aos bons tempos de uns 33 (e um pouco mais) anos atrás. Quando o país funcionava, o empresariado podia trabalhar, maconheiros não circulavam na frente de sua porta e se podia fazer piadas engraçadas e inocentes com “loiras burras“, como “Não vou te abraçar para não ficar excitado”.
*** No meio da noite, durante sonhos tão bons, o senhor acorda abruptamente. Tem uma ideia na cabeça. Finalmente se retoma um país no qual se pode ter boas ideias! Ele tira sua agenda de capa de couro da gaveta do criado-mudo, pega uma caneta dourada e escreve: “Preciso avisar o advogado que este é o momento de reivindicar aquele meu terreno que foi invadido por uns artistas fedidos. Vou fazer um mall (ele puxa o acento no “a”) lá. Tipo os de Orlando!”.
Um comentário em “O caso do senhor careca sem peruca”