Temos de escolher entre 3 mundos. Mas 2 deles fingem que o 3º não existe

(Este texto é sobre a peça Os 3 Mundos. Só que também sobre os 3 mundos dentre os quais o Brasil terá de escolher no próximo domingo)

Assisti há pouco tempo a peça Os 3 Mundos, escrita pelos ótimos e inventivos quadrinistas gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, que em suas carreiras mais se destacam pelas ótimas histórias, menos pelos desenhos. Mais uma vez, o roteiro que se sobressai – em meio a um estonteante visual que simula nos palcos a linguagem das HQs e em muito lembra filmes como Mad Max.

Os 3 Mundos versa sobre um mundo apocalíptico no qual os sobreviventes têm de escolher dentre… rufem os tambores do mistério… três mundos. Uma tripla realidade que em muito se assemelha às alternativas às quais teremos de optar no próximo domingo de eleição (dia 7). Não tão-somente pelo composição desses mundos, mas também por como seus líderes se articulam no poder.

Dois desses mundos são comandados por tiranos. Tratam-se de modelos distópicos parelhos com os arquétipos orwelliano (de 1984, o livro que nos apresentou a ideia do Big Brother) e huxleyano (de Admirável Mundo Novo). No programa da peça (a quem não é habitué: aquele livretinho de apresentação do elenco e da obra), destaca-se uma explicação desses dois tipos de autocracia, por meio de um texto (já citado neste blog) do crítico Neil Postman. Uns trechos:

“Orwell temia que nos privassem da informação. Huxley temia que nos dariam tanta informação, que nos reduziriam a um estado de passividade e egolatria. Orwell temia que a verdade nos fosse ocultada. Huxley temia que a verdade fosse afogada num mar de irrelevância (…) Em 1984, as pessoas são controladas pela dor. Em Admirável Mundo Novo, as pessoas são controladas pelo prazer. Orwell temia que seríamos arruinados por aquilo que odiamos. Huxley temia que seríamos arruinados por aquilo que amamos”.

Na peça, o universo huxleyano ganha vida no Grupo da Serpente, uma sociedade religiosa que segue uma messias, uma guru, a Lachesis (papel de Paula Picarelli, também idealizadora do projeto). Uma belíssima mulher, praticante de kung-fu, que convence seus seguidores de que é pela crença total na existência de uma grande serpente, submetendo-se aos mandos da divindade, que se superará o Apocalipse. Quem passa os mandos da divindade? A própria Lachesis, é claro.

Mais que isso, a carismática líder indica que a redenção à sua autoridade máxima leva a uma vida mais prazerosa. Ela oferta sexo, superação física, meditação e outros agrados aos súditos. A submissão, portanto, é por meio do amor extremo.

Do outro lado, no mundo orwelliano, encontra-se o ditador Acônito (interpretado por Thiago Amaral), algo como um Stalin mais gordo e de voz finíssima. Ele comanda seu povo pela linha dura, militar. Em seu chamado de Mundo das Máscaras, seus servos não têm direito nem de exibir os rostos, sempre encobertos.

Acônito, obeso, vive em fartura enquanto a população passa fome. Aos que reclamam, a punição é violenta: fuzilamento ou explosão por granada. Todos os dias, em ritual de sacrifício que lembra os dos antigos maias, um de seus vassalos é obrigado a acompanhá-lo até sua torre, da qual rege o reino do terror. Lá, sacrifica a vítima para abastecer as caldeiras de sua fábrica de medo.

Lachesis e Acônito se diferenciam na forma. A primeira quer conquistar as pessoas pelo amor. O segundo, pelo ódio. No entanto, só está nesse detalhe a diferença. Na prática, os reinos são quase iguais. Promete-se a superação da crise àqueles que seguirem rigidamente os mandos do déspota lá em cima. Quem não aceita é punido – usualmente, com tortura e morte.
(Aviso de muitos spoilers a seguir, todos necessários para compor a lógica do texto. Porém, não se desespere, nenhum tirará a magia de ver a peça)
Na maior parte da narrativa, Lachesis e Acônito entram em conflito. Cada um quer puxar o povo para o seu lado. Ambos apresentam seus mundos como as únicas opções em meio à ruína da civilização. Não existiriam alternativas.

Ou as pessoas podem sobreviver sob a mão rígida e paternal de Acônito, ou embaixo da palma falsamente carinhosa e maternal de Lachesis. No fim, o destino é o mesmo: em ambos os cenários é preciso levar a vida como mandam que se leve.

Não são aceitos os diversos, os diferentes, os criativos. Em suma, indivíduos de fato, daqueles que têm e expressam a própria individualidade, não podem existir nas distopias do Grupo da Serpente e do Mundo das Máscaras. Só são aceitos os asseclas dos tiranos e aqueles que baixam a cabeça para seus soberanos.

Como sempre foi e sempre é em regimes totalitários – aqui, não falo mais de ficção –, não se apresentam alternativas. Ou se pode estar de um lado ou de outro do espectro distópico. Ou se é refém dos orwellianos ou dos huxleyanos. Não se mostra que pode existir um terceiro mundo. Mas ele existe.

Descobre-se em dado momento (sem detalhes, para não dar ainda mais spoilers) que há uma terceira opção. A alternativa é o rock’n’roll. A música da liberdade. O respeito pelas diferenças. A convivência, em vez do conflito. O mundo sem líderes máximos expostos em figuras de gurus ilusoriamente amorosos ou ditadores brutos e brutais. Aquele no qual o povo compreende a diversidade de existir e, assim, governa a si mesmo.

São os mesmos 3 mundos que poderão ser escolhidos no próximo domingo de eleições. Dois deles fingem que só existem duas opções. Ou se estaria com o Bolsonaro orwelliano ou com o PT huxleyano. Para as cabeças de ambos os lados, para os comparsas desses e seus seguidores fanáticos, não existem alternativas além dessas duas. É gente que não gosta de e/ou não entende o que é rock’n’roll.

Mas existe, sim, um terceiro mundo. Um no qual as opções são múltiplas, saudáveis e em que seres humanos são tratados como indivíduos, não como ovelhas de um único pastor. Os outros dois mundos fingem que não haveria essa opção de realidade. E pode ser por isso mesmo que uma das distopias leve a vitória. Porém, já sabendo que, no dia de amanhã, terá de enfrentar o bom e velho rock’n’roll para tentar se manter por lá.

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