Acordei numa rebordose. Atrasada. Efeito de um ácido tomado há tempo.
Foi numa rave de 2002. Falaram que o doce tava no ponto. Como todo doce, esse tinha nome, vinha de uma linha. Não me recordo ao certo a alcunha, mas tinha a ver com um bicho, acho que um molusco. Ligação com o Bob Esponja? Era moda em 2002. A estampa na cartela do ácido eu recordo bem. Um cara barbudo, estilo hipster, mas bem raiz, nada Nutella.
A viagem foi boa de início. Parecia que eu decolava feito foguete. Rumo a um céu de arco-íris e tantas maravilhas. Sentia-me um novo milionário com orgulho do que via. Uma euforia só. As pessoas pulavam ao redor, em efeito do céu cheio de diamantes. Chovia boa fortuna. Todos dançavam movidos pela brisa.
Só que depois de um tempo a vibe virou dor de cabeça. Sabe aquele pós-festa que bate pesado? Demorou para chegar, mas chegou. O corpo cobrou. A mente cobrou.
Eu e meus colegas de farra nos sentimos presos a amarras. A vida cobrou. O trabalho cobrou. Não é tudo balada. Depois de muito esforço, porém, assim como uns remédios extras, e suor na camisa de mangas arregaçadas, a enxaqueca parecia passada, vencida. A onda não tava tão boa. Só que havia certo ar promissor.
Mas depois de 16 anos o ácido voltou a cobrar. Amanheci com o gosto amargo na boca, a garganta seca, sentindo-me sem voz. A visão, turva. Sem conseguir enxergar em meio a uma atmosfera nublada. A rebordose dá aquela vontade de desligar as luzes, deitar na cama e meditar – ou fingir e acabar dormindo – por um tempo, até que as coisas se acalmem.
A ressaca é brava. Não veio sem delírios. Assim que voltei a colocar o pé para fora da cama (o esquerdo, para procurar sorte), a vibe regressou. Mas numa bad trip das bravas.
O sonho se transformou em pesadelo. De repente a sensação passou a ser a de que vivia num imenso reality show. No comando, só aqueles que se saem melhor em reality shows: subcelebridades jocosas, toscas, obtusas, fanáticas (cada uma com seu fanatismo), hipócritas, que tentam ganhar o milhão no fim do programa só na base do grito.
Parece que são esses que começaram a tomar conta da vida. Ou seria só a bad trip? Não sei distinguir. O que sei é que o pesadelo começou em calafrios, passou pela apreensão e ansiedade, pela negação e está evoluindo para o puro terror.
Afinal, imagina sua vida controlada por figuras como um ator pornô especialista em anal técnico. Na minha viagem, surgiu o delírio que o mesmo rejeitou o próprio filho e, noutra, agarrou uma senhora religiosa à força para satisfazer as próprias vontades. Na gerência imposta de minha própria vida, essa foi a subcelebridade encarregada de cuidar do setor “família”. Em tempo: este dizem que larga na frente na competição do reality show por ter experiência em programas do tipo.
Tem ainda na administração uma fofoqueira que adora espalhar não só mentiras, mas, quando diz alguma verdade, imita o que outros diz. Plagia o que lhe convém. Acredita que a boa informação é a criada por si mesma. Essa é a senhora, de ares roliços, que ficou responsável pelo setor “comunicação” da minha rotina – e de meus amigos; em especial, dos mais cultos. Em tempo: dizem as fake news que ela é uma das favoritas para ganhar o reality show por já ter o perfil esperado para um programa da Fazenda.
Muitos e muitos completam o time das subcelebridades que, em meu delírio, conquistaram o controle de minha vida. Calma aí, a bad trip tá indo além, parece que os domínios dos famosos B se estendem cada vez mais. Há risco de controlar o país.
Ao time de subcelebridades se incluiu um paladino de verdades talhadas. Adorado por anos como o herói que trouxe os remédios para vencer as dores de cabeça de uns anos atrás, daquele ácido vencido, na rebordose ele se provou um dos mais estrategistas do reality show. Alavancou-se na catapulta da panaceia fabricada por ele mesmo para se tornar também um dos mais famosos entre os famosos do B no governo de nossas vidas. Sem nenhum receio – afinal, porque teria, já que tudo não passa de um devaneio de doce fora da validade… –, evidencia que forçou a doença toda para tornar o remédio criado por ele mesmo uma droga essencial. Viciou-nos para, no fim, tornar-se ele próprio o dono da farmacêutica.
Não tenho medo de palhaços quando estamos – eu e eles – sãos. Mas não é recomendado vê-los numa bad trip. E esses surgiram aos montes. Assim como assassinos travestidos de homens de bem à caça de bandidos. E ladrões de primeiro linha, daqueles de terno, pregando transparência, honestidade e a prisão de qualquer um que lembre de suas ladroeiras. Um deles é cotado, talvez ao lado do ator pornô, para comandar o ministério da família das famílias de bem. Assim como o ator pornô, por ser ator e sacar tudo de senhoras religiosas e de anal técnico, se não for para o comando das famílias, é cotado para definir que livros posso ler, que filmes as crianças devem ver, quais exposições são passíveis de serem expostas. Afinal, ele é ator e manja de cultura.
Nessas horas de bad, o melhor é recorrer à ciência. Lá sempre há solução. Calma aí… na hora em que consegui me desvencilhar do mar de celebridades e alcançar um cara vestido de astronauta, descubro que ele é o único remanescente dentre cientistas. E ainda é fake news: piloto de caça ou foguete não é PHD em nada. Tentei entender as coisas que ele falava, em tentativa de me acalmar, mas parece que ele fala tão bem de ciência quanto o ator pornô de cultura. Difícil compreender pessoas tão mergulhadas no assunto, tão versadas sobre tudo isso.
Para procurar entender o que o astronauta falava, abafado, de dentro de seu capacete, questionei sobre sua linha de estudo. Se olhasse para seu passado, poderia compreendê-lo melhor. Em ciência, costuma funcionar. Foi aí que ele tirou uma credencial que, em minha bad vibe, se mostrou infalível: ele vem da tradição científica de Laika. Apesar de ele mesmo não apreciar o termo laica.
Desesperei-me. A bad trip já progrediu. Ainda progride.
Não consigo mais controlá-la. Tenho de pedir ajuda aos médicos. Aceito até as autoridades. A rebordose tá osso. Tem de ter alguém no comando desse reality show Brasil. Vou chamar o síndico.
Achei o síndico em meio a palhaços, atores pornô de uniforme e cachorros indo para o espaço. Ele tá com uma boina do exército. Bateu continência e talvez esteja aberto a conversar. Vou tentar.
Falo. Falo. Falo. Ele continua estagnado, em continência. O olhar vago, parecendo não entender o vocabulário que uso. Insisto. Nada adianta. Fala. Falo. Falo. Até que ele responde.
Parece que ele não se dispõe a meu ouvir. Nem quer saber meus argumentos. Não se abre a debates a quem já não foi escalado pelo reality show. Só aceita papear com subcelebridades. As minhas credenciais não me deixam apto.
Sou filho de mãe divorciada, criado por ela. Convivo com gente que para ele não é “de bem”, como gays e mulheres que não mereceriam ser estupradas. Caramba, ele até olhou no meu Instagram que uns meses atrás eu escolhi – e por opção; livre e espontânea vontade – dormir uns dias numa tribo indígena.
Não dá. Sou um degenerado. Em minha bad, estou me convencendo disso. Sou mesmo um degenerado. Um homem não “de bem”. O que me resta agora para sair desse pesadelo?
Se ao menos tivessem me avisado que aquele ácido de 2002 tinha vencido lá pelos idos dos anos 1990. Me deram doce do século passado. Tava amargo paca. Tá foda superar as sequelas. Decidido: não vou mais aceitar doces de estranhos. Mamãe tava certa.
Um comentário em “Brasil: uma bad trip de ácido vencido”