Dia de Circo

(Escrevi este conto quando tinha acabado de completar 20 anos de idade, em 2005. Partiu de pensamentos sobre o circo da política. Lembrei dele hoje, por ter tudo a ver com as eleições que enfrentamos. Tão atual e triste imaginar como um só candidato conseguiu juntar delírios amarelos e raivas rubras, traduzindo muito do que mostro aqui com o olhar dos 20 anos. Espero apenas que na vida real não cheguemos ao fim da metáfora)

Ela ria.

Os palhaços a divertiam com suas piruetas e cirandas. Suas performances tomavam o picadeiro, causando inveja a todos os outros membros do Circo (o Apresentador, com seu olhar sublime). E ela babava e gargalhava, batendo as mãos no joelho. Êxtase preenchido pelo entretenimento.

Um vestido de vermelho vivo e outro de amarelo berrante, ambos com o clássico nariz de sua profissão. Aquela risada incessante os fazia gozar.

Vermelho – contra-indicações: pessoas psicóticas, sanguíneas, pressão alta, febre, pessoas muito nervosas, pessoas em estado de fragilidade intensa, pessoas muito idosas, recém-nascidos (nestes casos deve ser substituído pelo índigo nas suas indicações).

Amarelo – contra-indicações: insônia, delírio, demência, pessoas extremamente nervosas e diarréia.

Ela ria.

Brincavam de ciranda. Amarelo pulava. Pulava. Pulava. Vermelho gritava, esperneava, urrava e esmurrava. Se batiam. Fingiam soltar pum. Mijavam. Corriam de um incêndio. Dançavam, atrapalhados. Ela ria. Vermelho sacaneava Amarelo, que chorava. Abraços. Choques. Esguichos d’água. Subiam a escada e mergulhavam em um balde minúsculo. Jogavam bolinhas para o alto. Ela ria. Mão na bunda. Tira de lá. Bota para cá. Um beijo longo, cheio de graça.

Amarelo brilhava mais no picadeiro, com seus pulos altos e a cabeça que não parava de mexer.

Cheio, o palhaço rubro não apreciava a situação, ao ver os olhos dela em seu colega. Quer aparecer, é egoísta, suga a atenção, sai do que planejamos. O invejoso pegou seu balde de água e atacou Amarelo, que se queimou com aquele líquido de raiva. Sempre mantendo os movimentos perfomáticos. Vermelho mostrava seus dentes, andava como lorde e criava fogo com sua palma.

Ela ria.

Amarelo derreteu até virar um bege bem claro. A fantasia queimou. O nariz de palhaço caiu. Gotas de maquiagem alagavam o chão. Não entendia porque tinha sido traído por seu colega. Para quê violência quando o que queriam… sabia, mas preferia esquecer. Vermelho não podia fazer parte do plano dos malvados vampiros. Aqueles sugadores malditos, práticos destruidores da arte. Sim, agora tinha certeza, só podia ser. Era um espião que quer roubar o picadeiro.

De seu bolso, tirou uma faca. Cortou. Gargalhou. Ranho escorria pelo rosto. A maquiagem voltava. Tira braços. Fantasia surgia. Arranca pernas. Um plin e o nariz. Bege voltou a brilhar como o Sol e entrou em uma felicidade abismal. Pulava. Pulava. Pulava. Imitava uma galinha degolada. Debochava. Uma pirueta. Duas piruetas. Demência.

Ela ria como nunca e, agora, sua acompanhante começava a se preocupar com o show.

Decepado, Vermelho não podia mais entreter a pequena menina sorridente. Amarelo pulava. Loucura. Amarela pulava. Febre. Amarelo pulava. Raiva. Amarelo pulava. Vingança. De sua boca, tirou uma dinamite, que se acendeu com o toque de sua língua. Em um estrondo, o ato acabou.

Ela ria e sua acompanhante batia palmas.

O Apresentador (chapéu, bengala, terno e óculos, tudo laranja) corre para a frente do palco, tropeçando, aplaudindo, se contorcendo, sempre firme e agradável.

“Aplaudam meus queridos. Meus queridos aplaudam. A próxima atração de nosso circo irá amedrontar, surpreender e até excitar alguns de vocês. Quente. Linda. Vocês não conseguirão dizer não a ela. Dêem as boas vindas para a Dama, a domadora de homens”

Do fundo do picadeiro, macacos trazem uma jaula redonda e de base quadrada. Nela, dois homens nus rugem, berram e batem no peito. Um se joga na grade, sacudindo o ferro. Outro bate no chão, balança e grita invocações a deuses antigos. Amedrontados. Animais, tentam causar pânico nos espectadores.

Ela ri, enquanto sua acompanhante tira a calça e se masturba.

Explosões. Fumaça. Luzes. Surge a Dama. Peitos esculturais, abdômen definido, bunda perfeitamente redonda, cabelos e olhos negros, boca pulsante de me beija, te mordo. Na mão direita, um chicote verde cheio de espinhos e, na outra, uma espada. Nenhuma roupa.

A poderosa domadora vislumbra a plateia. Morte, olhos que atraem. A mulher anda para as jaulas, encarando as feras. O chicote desliza no chão úmido, gracioso. Espinhos cortam a madeira do picadeiro – um som agudo. A espada berra rouca com o ar – grunhidos. Cada passo – tambores. Acaba a música e a Dama entra na jaula.

A acompanhante se masturba. Ela ri. Os dois homens atacam. Um morde o pé. Chicote. Sangue espirra da carne masculina, atingindo a plateia. O Apresentador, sublime. Outro segura a domadora por trás, penetrando. A mulher se liberta e corta o agressor com a espada. Sangue espirra da carne masculina, atingindo a plateia. Um pula para cima da Dama. Chicote verde rasga a pele. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Contínuos e bruscos. MarcaDespedaçaDilaceraDigere. A acompanhante se masturba. Ela ria. O líquido rubro e espesso cobre a jaula. Os dois homens olham para sua dona. Submetem, desejam, abaixam a cabeça e lambem. Beijam pernas. Acariciam mamilos. Chupam o clítoris. A Dama se inclina. Ela ri. Gozo. Goza. Sua acompanhante goza. Aplausos.

O Apresentador, sublime.

Blecaute. Um cheiro de camélias toma o picadeiro. Batidas. Luzes. Pedaços de carne, órgãos, pele e sangue voltam a se reunir nos cantos do palco. Fantasia, maquiagem e nariz de palhaço. Vermelho e Amarelo, pútridos e cheio de queloides. Dama enrola o chicote em um dos machos, o outro ela conduz com a espada fincada no pescoço. A domadora sai da jaula com seus dois animais. Os astros do circo caminham para a frente do palco, formam uma fila e cumprimentam os espectadores.

(chapéus, bengala, terno e óculos, tudo laranja)

“Aplausos. Meus queridos. Aplausos. Vejo olhos esbugalhados. Risadas congeladas. Mas a diversão ainda será apimentada. O que aguardam. Nosso último número. A atração da noite. Desfecho que esperavam. O Banquete.”

Volta para seu lugar.

Dois zumbis, um amarelo e outro rubro. Uma mulher magnífica, a Dama, levando dois machos nus. O Apresentador, sublime.

Ela ri.

Dá nos jornais:

“Três artistas de circo e dois homens mataram ontem uma acompanhante. Laudo da perícia diz que eles devoraram a mulher, preservando somente a cabeça da vítima. Os circenses foram levados para o asilo da cidade e seus bichos encaminhados para o zoológico”.

“Os artistas eram dois palhaços, que estavam com o corpo queimado por um provável incêndio que aconteceu no local, e uma domadora de homens, completamente nua. Todos foram encontrados em um estado de ‘demência e raiva profunda`, declarou o Guarda”.

“O crime aconteceu durante o número final do Circo, após 12 horas de apresentação. Os envolvidos no assassinato eram os últimos circenses da cidade. O Delegado afirmou: ‘Todos os decadentes já foram expulsos e nenhum mais nos ameaçará’”.

“Só houve uma testemunha do acontecimento. Uma criança…”

Ela ri.

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