Quando a gente falava com os animais, havia paz

Vi o Paraíso na natureza. Não foi inédito tal vislumbre. Mas diante da magnitude de cânions, dos rios gelados e de pedras que cortavam a pele a cada novo passo, em aviso de que tudo é vivo e sangra, desta vez chorei em solidão. Chorei pela minha pisada nesta Terra. Pelas árvores que caíram para que eu lesse e estudasse. Pelo mato queimado para o gado que comi. Por cada animal que teve de morrer para que eu vivesse. Pelo verde e pelo sangue derramado em favor de meu modo de vida.

Pensei nos porquês. O que nós trazemos de útil a este planeta? No que veio a imagem de um ser humano há 200 mil anos, quando começou a ter gente por aqui. Posso vê-lo(a) trocando olhares de entendimento e respeito com mamutes, tigres-dente-de-sabres, leões-das-cavernas. Antes da linguagem, expressávamos como bichos. A gente falava com os animais. A paz reinava no Paraíso.

Se existe Deus, ou deuses, ou mesmo se ambos os lados formem um divino único, era lá que ele(s) estava(m). Adão e Eva nesse Paraíso. É na natureza que a divindade se manifesta. Em seus trovões, nasceu Thor. A Lua, berço de Ártemis. Assim como da Donzela, da Mãe e da Anciã. Levante uma pedra e Deus estará lá.

Ao falarmos entre nós, destruímos a paz reinante. Não se vê Deus no ouro das paredes das Igrejas. Não se vê Deus nas palavras de um presidente, por mais que ele repita a palavra Deus. Não se vê Ele nos posts de Instagram, por mais glorificados que eles sejam ao serem redigidos em textos acompanhados de fotos com poses em praias caribenhas. Não se vê Deus, nem seu filho, numa goiabeira plantada por mãos mortais. Não consigo ver a divindade nas palavras humanas.

Mas vi Ele e eles. Divindade e divindades. Pagão e pagãs por não falarem a nossa língua. No gelo do rio. No vento. Na tempestade. Na calmaria de um amontado de pedras que lá estão desde Pangeia. Deus e deuses.

Nunca tinha visto sentido no termo Paraíso. O vocábulo se ilustrava num retrato de humanos pisando em nuvens de algodão. Ou de abençoados correndo em um eterno jardim. Ou, num sentido viking, em guerreiros lutando pela manhã para depois beberem à noite, em um eterno ciclo de prazer. Imagens que só me lembravam do espelho. Quer ver o seu Paraíso? O seu Inferno? Olha-se por tempo prolongado no espelho do banheiro.

O Paraíso fez sentido ao sentir a força da cachoeira empurrando as costas. Lembrando-me das ilhas tailandesas, do Big Sur californiano, de cavernas mato-grossenses. De tudo aquilo que não foi fruto da linguagem humana.

A Terra é o Paraíso. Não o nosso Paraíso, esse de nosso próprio reflexo em um item talhado por dedos humanos. Mas o Paraíso em si. No qual há um ciclo perfeito de plenitude.

A gente, ao começar a falar, transformou esse Paraíso no Inferno. O Inferno é criação unicamente humana. Lapidado por palavras de guerra e peste. Quando deixamos de falar como e com os animais, eliminamos a paz em favor da elaboração de palavras como ambição e destruição. Transformando-nos assim no vírus planetário. Destruímos a paz de tudo e todos, incluindo de nós próprios, para passar a buscá-la incessantemente, sem sucesso algum. Jamais teremos êxito.

Entramos num labirinto envolto por civilização. No centro dele, talvez o verdadeiro Paraíso. Aquele no qual os humanos abandonariam o desejo do dizer em favor do simples viver. No qual parariam de falar para então voltar a falar com e como os animais.

Ao ver a natureza estampada em cânions, senti esse Paraíso e a total falta de necessidade de nossa existência para seu triunfo. Pela primeira vez, fiquei com vergonha do nascimento e de persistir na sobrevivência.

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