Enquanto assistia à reencenação de Roda Viva, a simbólica peça de Chico Buarque, no Teatro Oficina, não saía uma memória de minha mente. De uma conversa que tive com a inteligente e corajosa mãe de um grande amigo, durante uma viagem a uma praia paradisíaca do Rio. Falávamos de política, assunto no qual costumam cair nossos papos, visto que ela trabalhou na área e, nos tenebrosos tempos de ditadura dos quais alguns querem que nos esquecemos, foi oposição bem ativa – sofreu e viu sofrer nas mãos dos militares. Conversa vai, conversa vem, ela logo pontuou, firme:
– Filipe, sabe qual é a maior merda? Pensar que eu, nessa idade, aposentada, ainda tenho de defender as mesmas coisas de sempre. Ainda tô aqui batalhando contra os mesmos caras. Os mesmos canalhas. Os mesmos bostas. Dizendo que a mulher tem de ser respeitada e livre. Que não tá certo passarmos pelas ruas e vermos gente com fome, sem atendimento, e sem a maioria estar aí pra eles. Puta que pariu. Tenho vergonha de como não evoluímos.
Em minha adolescência, li Roda Viva. A peça é sobre um artista e seu agente “angelical” que entram na roda da mídia, da política, da propaganda, e de toda a lógica controladora de uma típica República de Bananas, para ascender na fama. Nos idos de 1968, a história retratava com perfeição o Brasil da era do AI-5. Em todo seu elitismo, obscuridade, obtusidade e violência. A simbologia irritou militares e comparsas, o que levou um grupo paramilitar (mas formado majoritariamente por policiais e militares) de extrema direita, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), a invadir o Teatro Ruth Escobar, espancar artistas e plateia, humilhar os presentes, depredar o cenário e coibir que refizessem a apresentação por muitos e muitos anos.
Outro dia, ao ler Verdade Tropical, a (meio que) autobiografia de Caetano Veloso, a triste cena é retomada. Durante seu cárcere, Caetano foi chamado por um oficial para um papo que lhe fez tremer. No meio da intimidação, o militar avisou pertencer ao CCC e ter sido um dos que espancaram os atores de Roda Viva. Ao que justificou, dizendo que não seria certo a “putaria” (palavras do oficial) que teriam feito com a Virgem Maria numa cena. Ao que Caetano, bem mais empático que seu interlocutor, logo fez uma ou outra pergunta. As questões revelaram o que ele previa: o fulano nem cristão era e o ódio pelo o que chamou de “putaria” estava muito mais ligado à força para reprimir qualquer um que quisesse sair do status quo da República dos Bananas; mesma razão insubstancial pela qual Caetano se via preso.
Ao chegar no Teatro Oficina em 23 de dezembro de 2018 – data simbólica para o grupo, na qual, em 1987, foi assassinado Luís Antônio Martinez Corrêa, o irmão de Zé Celso –, estava na expectativa para ver se atualizariam o texto para os tempos de hoje. Houve, sim, um ou outro ajuste.
Acrescentaram, por exemplo, o papel da internet e das fake news na roda viva brasileira. Assim como trejeitos e voz de Bolsonaro ao anjo maledicente e maquiavélico que atua feito agente do famoso em ascensão da peça. Também teve referências a outros personagens não fictícios e casos modernos, tão maledicentes e maquiavélicos – dentre outros adjetivos menos pomposos – quanto o anjo-Bolsonaro. Foram, no entanto, atualizações quase que cosméticas (assim como algumas canções acrescentadas). O núcleo do texto – e, em especial, sua construção lógica – se manteve sólido.
De início poderia cheirar feito naftalina a narizes daqueles que não saem de frente da TV e do Facebook (cada vez mais Fakebook), e só vão à rua de carro, do trabalho ao escritório e, no máximo, ao shopping. Para quem tem andado de fato pelas vias, ou mesmo é no mínimo ligeiramente empático em relação ao que se fala em Twitter, Instagram e afins, a história é outra.
O triste cenário é que o Brasil dos anos de 1960 e 1970 não muito se distingue do de hoje. Mudaram uns atores, as plataformas, os nomes. Só que ao se olhar, por exemplo, o retrato de Bolsonaro e todos seus ministros, nota-se como são os mesmos tipos, donos dos mesmos trejeitos, da mesma cor de pele, que continuam a tocar a roda viva da república. Hoje em dia, a única mudança (provavelmente provisória) é que faltam a nós opositores certa criatividade e certo brio. Todavia, não parece que tardará para que artistas, de youtubers a músicos, jornalistas e outros dos que, para Bolsonaro&cia, se aproveitavam de “mamatas” (quando na real querem “apenas” é tirar esses mesmíssimos canalhas de sempre de lá), comecem a rebolar mais. Talvez inspirados nos verdadeiros tropicais de uns tempos não tão distantes. Ou melhor, talvez tenham, por necessidade, de se inspirar nos precursores.
Em alguns aspectos – talvez quase que tão-somente excluindo dois pesadíssimos fatores, o da censura transparente e da violência e truculência aberta promovida pela Estado –, o Brasil não só continua na mesma, como regrediu. Não uns 50 anos, como espera o novo presidente. Mas alguns séculos. Para uma era obscura na qual se incentiva (por fora, tálkey?) o ódio, o preconceito a agressão contra tudo que é distinto de um modelo estabelecido por alguns poucos como de “humano ideal” (o branco, de cabelo liso, de elite, que fala ser cristão, que fala ser hétero, tálkey?). Passamos da ditadura para um momento de ambições eugenistas. Quem tá lá em cima indica ter inveja pela nação não ter tido uma Idade das Trevas para chamar de sua. Logo, por que não criar a própria versão abananada de tal era?
Persistimos como um povo de bananas sob o regimento da mesmíssima e persistente roda viva. Sabe qual é a maior merda? Pensar que talvez em uns 50 anos ainda tenhamos de defender as mesmas coisas de sempre. Batalhar contra os mesmos caras. Os mesmos canalhas. Os mesmos bostas.
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Crédito da foto deste post: Jennifer Glass / Divulgação