(Conto fictício livremente inspirado em fatos reais)
Ninguém parecia prestar atenção na curiosa história que se desenrolava no televisor daquele botequim de beira de estrada. Mesmo em lugar tão afastado, todos não tiravam o olhar das telas de seus celulares.
Era por volta de uma da tarde e passava o noticiário do pós-almoço. Portanto, a história curiosa era em todo verdadeira.
A primeira a aparecer era a Mãe. O nome, em si, não ficou na memória. Diferentemente de seu papel de Mãe. Por isso, aqui a conhecemos como Mãe.
A Mãe depunha à câmera.
“Eu não tinha muita coisa. Eu não tinha nada. Nem marido tinha”
Tentava se explicar, meio atrapalhada, meio emocionado. Procurava palavras para justificar o que naquele momento já lhe parecia injustificável. Desculpas que saíam de sua boca já sem sentido para ela mesma. “Nem marido tinha”. A verdade é que naquele exato momento em que falava à câmera ainda não tinha marido. E continuava a não ter muita coisa. Além do teto, da comida e da grana pouca dada pela patroa na fazenda de algodão. Nada tinha. Porém, sentia que tudo teria se tivesse feito escolha diferente e não precisasse, anos depois, justificar-se para o noticiário do pós-almoço
Anos antes, a Mãe havia abandonado o Filho. Como era Filho único, cabe o substantivo próprio.
A Mãe se despediu sozinha do Filho. Sem pai, sem amigas ou parentes para consolar. O Filho ainda não sabia pensar o suficiente para ter ciência do abandono. Para o bebê, era só mais um dia. Para a Mãe, o pior dos dias.
Tinha uma prima distante, de algum grau longe, que passava pela fazenda, de visita, trazendo algumas fofocas e um tanto de fome antes de seguir viagem. A prima tinha marido. E um carro. E uma bolsa bonita. E uma casa na cidade para chamar de sua. Ninguém precisava lhe dar teto. Mas mesmo que tivesse marido, a prima não tinha filho.
“Tentamos três vezes. Só nasceu uma. E morreu”
A Mãe olhou os sapatos da prima. Não eram como suas próprias sandálias, sujas, gastas e grossas como a sola de seu pé. A Mãe olhou o carro. A última vez em que havia entrado em um carro foi quando teve o Filho. A Mãe olhou as mãos, limpas, lisas e delicadas. A Mãe olhou o celular novinho. Ela nunca possuiu um, até então. A Mãe olhou o marido, que ela não tinha.
“Leve meu Filho. Com você ele terá tudo. Comigo não tem nada”
A única noite em que a prima lhe visitou foi a última em que viu o Filho.
“Só me prometa que mandará notícias. Ligue, escreva”.
No dia seguinte, a Mãe perdeu tudo. Sentiu, pela primeira vez, o que realmente era ter nada.
A prima só telefonou uma vez, quatro dias depois, para inteirar da fofoca de outra prima. Depois, nunca mais. Nem escreveu. O vazio daquele nada acompanhou a Mãe por sete anos.
***
Ela, a Mãe, não lidava bem com aquele celular dado pela patroa para encontrá-la a qualquer hora pelo zap. Não era seu primeiro, já era seu segundo. Só que o primeiro celular a ter tanta coisa. Aquilo não só telefona. Fazia tudo que se podia imaginar.
Mesmo que, naquele momento, a imaginação dela se concentrava em tentar entender por que seus dedos não pegavam direito naquela tela. Ela batia e batia com o indicador até algo acontecer. Quando acontecia, não era o algo que ela queria que acontecesse. Será que o problema estava em seus dedos? Era verdade que os sulcos da palma estavam cada vez mais salientes, a pele mais doída, castigada. Uma vez lhe disseram que ela estava envelhecendo rápido. Quando olhava no espelho, não discordava. Em sete anos, era como se tivessem se passado vinte.
A dica veio de uma amiga nova – de convivência e idade – que havia feito na festa dos empregados.
“É só esfregar o dedo assim bem forte. Esfrega bastante na calça até ficar quente. Pelando”
A Mãe seguiu a sugestão. Deu certo. Agora ela sabia que com o dedo quente funcionava melhor aquele celular.
“Mas o que dá pra fazer com ele?”
Questionou para a nova amiga. Logo teve início uma rápida aula sobre apps, internet, umas coisas chamadas memes – a amiga tinha recebido uns vários; tinha até do presidente. A Mãe não achou graça, mas riu. De WhatsApp, ela já sabia, pois junto com o celular veio o primeiro áudio da patroa: “Só clicar no microfone, falar e me enviar”. Tava craque nisso.
“No Facebook dá pra você encontrar qualquer pessoa”
A amiga parecia entender da coisa. Mas será que dava para encontrar qualquer pessoa? A Mãe já tinha ouvido falar do Facebook. A garotada da casa da patroa adorava. E também a garotada na plantação. A nova amiga instalou o app do Face no celular velho da patroa, novidade para a Mãe.
Essa coisa de procurar por outras pessoas era uma coisa muito íntima. Ela deixou para fazer isso para quando acabasse a cerveja e voltasse para o quarto – a patroa tinha deixado usar o wifi. Não demorou para que acabasse a cerveja.
Demorou a digitar, mas digitou: o seu próprio sobrenome. O sobrenome não era lá tão comum assim, então o resultado foi apropriado. As duas primeiras pessoas, a Mãe não conhecia. A terceira, o irmão que morava na metrópole e que não via faz um tempo. “Posso fazer aquela coisa do vídeo com ele”, logo pensou a Mãe, recordando de como os meninos da patroa sempre falavam por vídeo com tios que moravam longe; certeza que a ajudariam a fazer o mesmo com o irmão.
O quarto nome era de um sobrinha. O quinto, de outra sobrinha. No sexto, a prima que não via fazia sete anos. Na foto, a prima abraçava uma criança. Um garoto. De seus sete anos.
Foram-se apenas quatro dias até ela entender tudo de Facebook e, mesmo que não compreendesse todas as palavras, sacava o suficiente para saber que seu Filho nem na mesma cidade estava. Tava em outra, um pouco mais distante, mas ainda a apenas 1 hora e meia de ônibus, logo se informou. Já sabia que tinham trocado o nome – que tanto gostara – do Filho. E ele estudava em uma escola boa, logo descobriu. O Facebook lhe contou tudo. Sem nem ter se tornado amiga da prima.
Aquele vazio, domínio do nada, começava a ser repreenchido por fotos, de festas de aniversários de todos os anos. Tinha até vídeos, como um de quando ele tinha começado a andar.
Aquele filho era dela. Decorou a cor caramelo de seus olhos, cada ondinha do cabelo cacheado, a tonalidade da pele entre branca e ébano. Aprendeu a palavra ébano no Google para saber descrever para si o brilho do Filho. Dava para saber qual era a camiseta que mais usava, de um desenho que passava na TV. Conheceu amiguinhos por fotos, assim como as tias da escolinha.
Foram-se só mais outros cinco dias para ela comprar a passagem. Pensou em convidar a nova amiga para a viagem, só que logo soube que, por mais amiga que fosse, não entenderia o anseio da Mãe. Embarcou passados mais dois dias.
A viagem passou da 1 hora e meia que dizia a internet. Mas chegou lá. Havia aprendido que dava para achar qualquer endereço no celular. Foi andando para a escolinha. No entanto, a caminhada demorou e, ao chegar, as portas estavam fechadas, as classes encerradas.
Dormiu em uma pensão próxima. A dois quarteirões para não perder o horário.
No dia seguinte, chegou às 6 da manhã. Estava acostumada a acordar cedo, assim como estava em esperar. Esperou. Às 7h30, o Filho chegou.
A visão lhe satisfez de forma que achava que não era possível. Era um brilho divino e ela se sentia Maria. A Mãe novamente Mãe. A pele pareceu rejuvenescer, ganhando 20 anos em 7 segundos. Sete segundos nos quais pôde admirar, registrar como memória fixa, tudo aquilo que decorou por fotos: a cor caramelo dos olhos, cada ondinha do cabelo cacheado, a tonalidade da pele entre branca e ébano.
Foram outros três dias de observação até ela se decidir. A Mãe e o Filho pertenciam um a outro.
Em um vídeo no Facebook, descobriu que o garoto era vidrado por bonecos daquele mesmo desenho da camiseta. Ela comprou dois.
“Oi, eu sou prima da Ercília”. Ela sabia o nome da mãe, a de criação, e do pai, e de toda a família. Já fora a família dela. Detalhou como Ercília havia lhe contado sobre seus gostos, como o por aquele desenho.
“Comprei esses dois bonecos para você. Vem comigo que eu dou mais. Podemos comer um lanche gostoso antes da Ercília te buscar. Ela disse que podia. Que hoje você podia faltar na escola”. O Filho deu confiança. Gostou dos bonecos.
***
O lanche durou 8 dias. A Mãe fingiu que se perdeu e foi parar de volta em seu quarto na casa da patroa. Com o Filho. A polícia bateu à porta por volta das seis da manhã. Trataram-na bem, mas levaram-a com o Filho para a delegacia. Chegando lá tinha a prima, o marido da prima e a câmera do noticiário. Ela se justificava.
“Não tinha nada e levaram meu Filho. É meu e quero de volta. Saiu de mim. Ele é tudo”
“Achei no Facebook. É. E fui até lá buscá-lo”
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Chorei!
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