(notas de uma pandemia) CÂMARA ESCURA

(Trecho de capítulo que integrará um livro em processo de escrita. Inspirado no contexto atual, nos nossos arredores. Dá também início à vontade de compartilhar criações que vão aflorar em meio ao período de isolamento para superar a pandemia do novo coronavírus)

A primeira memória que me vem daquela noite é da estranheza de observar meus pés como se fosse algo novo. Imagine o pé. Um toco de pele, osso e carne, com cinco dedos anexados. Uns contam com o dedão maior, noutros é do mesmo tamanho dos outros. Não menos esquisito é refletir sobre o corpo. Tronco equilibrado em dois palitos com hastes laterais e uma esfera no topo na qual se estabelece algo como uma central de comando. Humanos, não tão distintos de máquinas. Com durabilidade ínfima.

Estranhei-me no “humano”. A sensação de distanciamento da própria espécie, única a contar em termos de possibilidade de compreender o que falo, não passa sem desconforto. Notava-me como ser mecanizado e frágil. Um pálido ponto bege. Mas é o único lar que conhecemos. Carl Sagan viu o mundo como o azul do universo. Antes dele, o mundo é nosso disforme e funcional corpo. Gostemos ou não, onde temos de ficar por enquanto.

A durabilidade me veio à cabeça enquanto espiava o terraço. Válido até quando? Expunha-me para permitir também ser observado. Surgiram inúmeros nas janelas. Percebi que minha geração talvez presencie seu trauma. O marco que fica para espaço-localizar nos livros de História. A consciência bateu não ao escutar os gritos de “fora”, “volta”, “chupa”, e vuvuzelas e panelas. Tornou-se quase rotina. A ficha caiu ao olhar para baixo e absorver as ruas vazias. Um morador de rua. Uma trans guardadora de carros que aborda “Tem roupas pra doação?” toda noite, mesmo horário, como se jamais me reconhecesse, nem lembrasse de se realmente já doei as roupas. Um ciclista com aquelas mochilas vermelhas de marca de aplicativo que oferece entrega de tudo.

Se flagrasse naquele momento dezessete casais de tiozões reaças com camisetas amarelas da seleção, quiçá sentisse inesperado alívio. O sopro de normalidade. Nem isso foi dado. Batata! Proclamaria o carioca adicto de teatro dos anos 1960. Cada geração coleciona suas gírias, seus jeitos, seus traços. Traumas definem o sujeito. Uma geração necessita de traumas para ser definida?

Os perdidos da geração da I Guerra. Os grandes da II Guerra. Os silenciosos do Vietnã. A Wikipedia destaca um trauma para cada. A enciclopédia da internet me parece um tanto American centrada. Liberto-me para apresentar os boomers como os da Ditadura Militar. A geração X de Xuxa. Também foi a do Collor. Millennials tiveram internet discada e Orkut. Viram o 11 de Setembro bem mais de longe do que gostam de narrar. Acharam que revolucionaram o mundo por terem aposentado o telefone. Criaram guerras de palavras no Twitter. Deram novos nomes a novos traumas. FOMO, gaming disorder, Peter Pan. Millennials preferem os termos em inglês.

“Os millennials inventaram os próprios traumas”. Sabia que algum fulano já teria escrito sobre isso em algum site. Os millennials podem ainda se orgulhar de terem inventado uma forma de provar e desprovar qualquer coisa, seja a Terra redonda ou plana: o Google. Outro promete na esfera dos blogs: “Sou terapeuta especializado em millennials faz mais de 5 anos e é disso que eles mais reclamam”. Sabe do que mais reclamamos? “Eu tenho muitas escolhas e não sei qual tomar. E se eu for pela opção errada?”. Ao menos isso é o que diz o terapeuta de 5 anos de experiência com millennials. É a geração que reclama de ter oportunidades em exagero.

Jovem é jovem. Humano é humano. Aquele ponto bege no ponto azul do universo. Só que temos de confessar, por mais vergonhoso, que os pontos beges do século XXI cansaram de acusar um vexaminoso incômodo por estarem ficando como a geração do nem-nem. Fala-se tipo nenêm. Ouvi isso uma vez de um chefe, enquanto ele se vangloriava por ter “vivido a Ditadura, garoto”. Nem trabalha, nem estuda. Nem faz qualquer coisa. Sempre fui dos que estudam e trabalham. Ainda me veem como nem-nem.

Reclamamos tanto que só tínhamos a reclamar de quão sofrido é escolher dentre tantas opções de vida? Olho para baixo na sacada, a rua vazia. Nas outras janelas, multidões se recolhem. Sem opções a não ser a de permanecerem nas residências. Reclamávamos de escolhas? Agora só há uma. Nem há a certeza de que acaba em 40 dias.

– Tá bom, cara. Então você tava numa sacada, olhando pela janela, vendo gente gritar, com um treco Google, outro treco Wikipedia. O que a gente precisa descobrir é como viemos parar aqui nesse breu. Essa porra de devaneio Paulo Coelho não vai nos adiantar.

A impaciência do Garoto contaminava. “Existência gozei leda e serena”. Quem havia mesmo dito isso? O Homem não se recordava. Muito menos compreendia a ligação da frase com a história que contava enquanto rememorava. Estaria no éden ou no fogo eterno? Por que raios lhe dava a refletir de Paraíso e Inferno se nem existência creditava a eles? Parecia-lhe já em demasia o desafio de lembrar da história. Escapava-lhe até seu próprio nome. 

Era assustador observar que a escuridão completa não lhe impedia de ver os pés. Cogitou que ao fitá-los, repousados em um chão saído do vácuo, resgataria a memória daquela noite que iniciou com a estranheza dos dedões. Estava calçado.

Precisava colocar os tênis. Fui à varanda para não perder a panelada. Estava em dúvida se me motivaria ou se me faria desistir. Logo depois que o entregador do app de delivery de tudo deixou algum fast-food no prédio, saí à procura desse tênis cinza estilo skatista. Confortável para caminhadas. Olhei embaixo dos dois sofás, da cama, nos armários, demorei a considerar que podia estar soterrado na roupa suja. Não sei como foi parar lá. Deve ter sido lapso meu.

Não sabia de muita coisa. Algo me diz que até aquele momento ainda me lembrava de meu nome. De tudo da vida, o que já sei, o que procuro revelar dentre essas fotografias de minha cabeça. Só que não sabia porque gritavam na janela. Incompreendia o impedimento das pessoas que esvaziam as ruas. Por que pedintes, peões de obra e entregadores de delivery circulavam? Chegou-se a entender algo de tudo?

Fazia dez dias que permanecia descalço, em casa. Os espaços faltantes de pílulas na caixa de fluoxetina genérica não deixavam perder a conta. O clonazepam já havia acabado. Meus estranhos pés não se recordavam do que era ter a vergonha coberta. Apostei comigo mesmo, afinal não havia mais ninguém, que começariam a suar tão logo fossem cobertos. Batata!

Cheguei a conferir algo antes de decidir por romper ou não a porta do apartamento. Certeza que abri a geladeira. Mania familiar, repetida antes de sair de casa. Dei dois pegas numa ponta abandonada na tigela de estilo asteca ao lado de uma begônia com cara que tinha tido tempos melhores. Não bateu. Já vestia um moletom esportivo e uma camiseta branca de pijama. Agarrei uma jaqueta preta com um tipo de pelugem interna. Tive receio do frio. Abri a torneira para checar se haviam religado a água da rua. Nada. Peguei uma garrafa de 2 litros, uma long neck de uma cervejaria gringa, a bituca da maconha, carteira, celular, carregador de bateria, chave do carro, duas barras de chocolate, e uma faca daquelas de cortar carne, do tamanho do meu antebraço. Joguei em uma ecobag, desliguei as luzes. Não me fui.

Voltei a tirar os tênis. Sentia-me mais seguro descalço. Reparei que esqueci das meias. O que muda sair de meias? Encarei aqueles calçados cinza, comprados cinco anos antes em uma viagem a Nova York. Pensei algo assim “Do que adianta ter trazido memórias nova-iorquinas, italianas, espanholas, tailandesas, mexicanas… se nem de meu apartamento consigo agora viajar para fora?”. Por que raios eu queria me aventurar longe? Não me vem o motivo de imediato, todavia aquilo me saltava como um ato de alta periculosidade. 

Não buscava respostas. Era certo. Procurava por outra coisa. Pelo que realmente havia me compelido para a sacada uma hora antes. Existia o barulho das sacadas. Porém o desejava em meus ouvidos para silenciar outra coisa. Uma mensagem no celular. “Lembrei daquele filme. `Eu pensei que salvaríamos um ao outro`. O que você pensa em fazer com seu resto de tempo? A única opção é passarmos juntos”.

Te contei que era a Quaresma? Quarentena na Quaresma. Minha avó, italiana durona que o eu-criança jamais acreditava que seria vencida pelo câncer num lugar que a memória me tomou, teria visto alguma ação do Espírito Santo. Dezoito anos que não a escutava, desde que o eu-pré-adolescente faltou ao velório. No entanto, ainda conseguia ouvir a voz em meus ouvidos: “Tem de ir na missa de domingo se quiser ganhar a bicicleta do seu pai”. Qual seria minha punição por corromper Quaresma tão bíblica? Negariam-me quantos presentes de Natal? Todos, provavelmente.

“O que você pensa em fazer com seu resto de tempo?”. Reli no WhatsApp. Dei graças que a rua estaria vazia, assim chegaria rápido à casa dela. Não lembro de meu nome. Só que me custaria muito mais esquecê-la. Beatriz. Precisava achar Beatriz. Só me carecia saber se teria coragem, audácia, para calçar os tênis cinza.

Ilustração: colagem “Vende-se: caixa pé no chão”, de Sofia Lemos (@sofialemos_art)

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